Reflexões sobre o Jogo de Xadrez
Algumas reflexões aleatórias sobre o belo jogo que é o Xadrez e suas analogias com a vida.
A Abertura
A “abertura” no xadrez refere-se aos primeiros movimentos.
Uma abertura ruim compromete o jogo todo. Experimente sair errado contra um oponente que “segue o manual” — ele terá uma vantagem enorme, possivelmente ganhando o jogo.
Analogamente, um começo ruim na vida, ou em algum empreendimento novo, pode afetar drasticamente o resultado final.
No caso do xadrez, as aberturas clássicas estão totalmente catalogadas, pela sabedoria de centenas de milhares de jogos, por centenas de anos e milhares de enxadristas — temos o Gambito da Dama, Ruy Lopes, e dezenas de outros com centenas de variações. Não dá para garantir vitória pela abertura, mas dá para garantir “entrar no jogo” de forma competitiva, não perder logo de cara. Da mesma forma, na vida, estudar o conhecimento de centenas de milhares de anos, de qualquer ramo do conhecimento, não garante a vitória, mas garante um começo.
Raciocínio?
Todo mundo acha que o xadrez é um jogo de puro raciocínio, de calcular inúmeras jogadas à frente. Porém, é impossível um ser humano comum calcular tantas possibilidades assim. Na primeira jogada, há 18 possibilidades para as Brancas e 18 para as Pretas. Só aqui, há 324 possibilidades, e isso aumenta exponencialmente no meio jogo.
Em vez disso, bons jogadores usam heurísticas — controlar o centro, manter a formação de peões, ganhar material — e reconhecem padrões como cravadas, garfos e posições vantajosas.
Os mestres varrem o tabuleiro e olham para apenas algumas poucas jogadas possíveis, aquelas que efetivamente vão fazer a diferença — e aí se aprofundam nestas apenas.
É claro que o jogo necessita de bastante raciocínio, só que não é o único fator. A memória é um fator tão ou até mais importante do que o raciocínio.
Quando Kasparov enfrentou o Deep Blue, a IBM disse que ele não estava enfrentando apenas um computador, mas o “fantasma” de todos os grandes mestres do passado. Através do banco de dados de centenas de milhares de jogos, é possível treinar o computador para identificar jogadas vencedoras e bons padrões.
Se fosse um puro jogo de raciocínio, Einstein seria campeão mundial, não pessoas como Kasparov e Magnus Carlsen. Aliás, por depender de conhecer inúmeros padrões, e memória (na forma de banco de dados de partidas passadas), é necessário centenas de horas de treinamento.
Computadores
O xadrez é o jogo ideal para um computador: tem regras claras, informações perfeitas (toda informação está explícita no tabuleiro) e depende de cálculos futuros rápidos. Além disso é determinístico, com zero incerteza por fatores aleatórios.
Hoje em dia, o melhor campeão humano de todos os tempos no pico da sua habilidade perde feio para um programa de computador que roda num celular chinês meia boca falsificado!
O computador não funciona bem quando as regras são ambíguas, a informação inexiste ou é imperfeita, quando é necessário algum julgamento não quantificável ou no caso de grande incerteza.
Felizmente, boa parte dos trabalhos humanos estão em ambiente imprevisível, com informação imperfeita, ambígua.
Ou seja, se seu emprego é repetitivo, simples, predizível e automatizável, é melhor procurar outra coisa o quanto antes!
Concorrentes
Por melhor que você seja e por mais que treine, sempre haverá alguém melhor, acostume-se a isso. Derrotas e vitórias são comuns.
Olhar para o futuro
Os jogadores iniciantes só conseguem olhar para os lances imediatamente à frente. Já quem é mais experiente consegue olhar para as consequências mais prováveis das jogadas, ou seja, para os efeitos de segunda ordem. E os melhores ainda, os efeitos mais prováveis dos efeitos de segunda ordem.
As heurísticas (como controlar o centro, fazer roque o quanto antes) ajudam a dar alguns guidelines, porém, os grandes mestres e computadores conseguem ver além disso e ignorar as dicas quando necessário e vantajoso.
Da mesma forma, na vida temos que olhar para efeitos de segunda e terceira ordem de nossas ações. Quem olha apenas para o que está imediatamente à frente pode se arrepender depois. Casar com alguém cuja personalidade conflita com a sua pode ser bom no começo, mas no médio prazo, problemas vão surgir… Apostar nessas Bets bizarras porque ganhou um pouco no início certamente vai dar errado tempos depois…
Pensar
Pense antes de fazer uma jogada. Principalmente por conta do tempo, do relógio ali tomando os minutos, não raras vezes fazemos alguma jogada que parece boa, mas que é uma armadilha ou contraproducente algumas jogadas depois.
Pensar e tomar a decisão certa vai poupar mais tempo do que consertar uma decisão errada.
Mate Pastor
O Mate Pastor é uma jogada infame que possibilita check mate em 4 lances.
Todo iniciante já 1) Tomou o mate pastor 2) Já tentou aplicar e conseguiu 3) Já tentou aplicar e levou um baita contra-ataque.
Esta é uma jogada para iniciantes, completamente contraproducente em níveis um pouquinho mais elevados, por perder tempo de jogadas com a Dama, por não desenvolver outras peças, e por ter contra-ataques já conhecidos e consagrados.
Não menospreze o oponente ao tentar jogadas sabidamente de iniciantes, isso não vai dar certo.
Meio-jogo e Fim
A abertura ajuda no começo, mas não garante o fim. Se dois oponentes fizerem abertura decente, daí para frente depende deles.
Analogamente, uma boa formação, uma boa faculdade e valores vão ajudar os jovens a entrar no jogo, daí para frente, é de cada um. Não é garantia de um bom final.
Um fator que não tem no xadrez, mas tem na vida, é a sorte. No xadrez não tem aleatoriedade: alguém muito capacitado vai bater o menos capacitado, por isso, as pessoas abandonam o jogo quando vêem que estão em desvantagem irrecuperável.
Outra coisa que não tem no xadrez e tem na vida é a desigualdade material. No xadrez, os oponentes começam com igual número de peças de igual poder. Na vida, isso não é verdade: é como se um começasse com as peças todas, e outro, sem a dama, sem as torres, com metade dos peões, etc…
No final das contas, temos que jogar da melhor forma que pudermos, com as peças que temos, estudando o que é possível conhecer, respeitando os demais, e contando com uma pequena ajuda da Fortuna!
Originally published at http://ideiasesquecidas.com on January 13, 2025.