Arnaldo Gunzi
3 min readJun 2, 2024

Memórias do Subsolo, uma obra-prima

Imagine um homem sombrio e atormentado, com nenhuma ambição nem conquistas na vida, um bosta total. Que passa metade do livro reclamando da existência miserável e inútil que tivera até então. Um funcionário público aposentado, ele vive isolado em São Petersburgo. Um homem desprezível, mau, amargurado, pelo qual temos zero empatia — por exemplo, em suas memórias, há trechos em que se orgulhava de atender mal a população quando no serviço público.

É também um protagonista sem nome, de um livro escrito em primeira pessoa — ele pode ser eu ou você. De alguma forma, todos nós temos um pouquinho desse ser abjeto em nós.

“Memórias do Subsolo” é uma obra profunda, publicada pelo escritor russo Fiódor Dostoiévski em 1864. Este romance curto é frequentemente aclamado como uma das primeiras investigações da corrente de pensamento do Existencialismo na literatura mundial.

A narrativa se divide em duas partes, cada uma revelando facetas distintas, porém igualmente perturbadoras, da alma humana.

A primeira é “O Subsolo”: É a parte descrita acima, um monólogo com críticas à sua vida pobre e amarga, com zero conquistas dignas de orgulho, escrevendo do subsolo, da lama que é a sua horrível vida de merda.

O primeiro parágrafo é um prenúncio do que é o personagem:

“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Acho que sofro do fígado.”

A segunda parte, “A Propósito da Neve Molhada”, é uma narrativa mais concreta, mas não menos atormentada. Ele revisita três episódios humilhantes de sua vida.

O empurrão. Num certo evento social, um oficial do exército simplesmente o empurrou para abrir passagem, como se fosse um cachorro. O protagonista, raivoso, porém impotente, passou anos remoendo o assunto e planejando a sua vingança. Mapeou as ruas em que o oficial passava. Preparou-se mentalmente para dar o troco, chegando até a comprar roupas novas para que a ocasião transcorresse com a importância que deveria. Mesmo assim, ocorreram vários casos de hesitação, em que, no último momento, cedia passagem ao oficial. Até que, num momento “vai ou racha”, ele finalmente tomou coragem e não cedeu espaço ao oficial, colidindo com o mesmo, ombro-a-ombro. O oficial simplesmente ignorou e foi embora. Já o protagonista comemorou o feito, um dos grandes momentos de sua vida ridícula.

O encontro com colegas de turma. Apesar de ter sido sempre ignorado e desprezado pelos colegas de turma, e ter achado a formatura e separação uma bênção, numa ocasião ele fica sabendo que alguns dos colegas iram se encontrar para a despedida de um deles, que iria para outra cidade. O nosso protagonista resolve “se convidar” para a ocasião. No encontro, os colegas tentam iniciar tratando-o bem. Ele bebe demais, desrespeita a todos, e passa a ser ignorado. Recusando-se a ir embora, ele continua ali, zanzando de um lado a outro, bebendo e perturbando os demais. Até que, após o jantar e confraternização, os antigos colegas partem rapidamente, deixando o nosso anti-herói para trás.

A prostituta. Porém, o homem do subsolo não se dá por vencido. Chama um cocheiro e parte atrás dos colegas. Ele vai parar num prostíbulo, julgando que os demais tivessem ido para lá. Não encontra os colegas, mas encontra uma prostituta. Para esta, faz um discurso moralista, recomenda que ela saia de tal vida. Fica um tempão dando o seu sermão, nutrindo-a de esperanças, de que era uma moça jovem e bonita, que encontraria amor e família se saísse de tal situação. Alguns dias depois, a prostituta o procura em sua casa, resoluta em sair daquela vida e buscando ajuda. O nosso protagonista finalmente revela que estava totalmente bêbado, apenas fizera tal discurso para humilhar outrem, uma vez que ele mesmo fora humilhado anteriormente pelos colegas. Que a desprezava, que ele mesmo levava uma vida ridícula e vazia, e não levantaria um dedo para ajudá-la.

“Memórias do Subsolo” é uma obra de uma intensidade emocional esmagadora e sinceridade brutal, que desafia o leitor a confrontar a complexidade e as contradições da mente humana. Dostoiévski, com sua prosa magistral, nos força a olhar para dentro do mais sombrio que temos dentro de nós mesmos.

É um livro curto, escrito pouco antes da sua melhor fase. Alguns anos depois, viriam as obras “Crime e Castigo” e “O Idiota”.

Link da Amazon: https://amzn.to/4c5bc6L

Arnaldo Gunzi
Arnaldo Gunzi

Written by Arnaldo Gunzi

Project Manager - Advanced Analytics, AI and Quantum Computing. Sensei of Analytics.

Responses (1)